quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

FICCIONALIDADE DO REAL X REALIDADE DO FICCIONAL

A velocidade da informação e da comunicação digital mudaram para sempre a forma de se ler e interpretar o mundo.

O excesso de signos que saturam os campos visuais, sonoros e tantos outros, acaba por produzir uma sensação de hiper-realidade. O indivíduo, imerso nesse sistema, nem sequer se dá conta de que a vida não é um produto a venda em uma prateleira de supermercado ou numa rede qualquer de fast-food.

A sociedade de consumo constrói uma realidade onírica calcada na ilusão gerada pela propaganda. Com efeito, as aparências das coisas, que nos saltam aos olhos, são manipuladas em espaços digitalizados e são construídas para ressaltar não a essência ou natureza do produto, mas a aparência, gerando uma impressão de qualidade e de necessidade. Dessa forma, tudo se consome nos dois sentidos da palavra consumir: tanto consumir de adquirir bens de consumo, quanto consumir de fenecer, acabar, ou seja, ser engolido pelo tempo, assim como Cronos que engolia seus filhos.

Somos consumidos pela mídia, que provoca sempre a sensação de realidade, criando simulacros a fim de nos convencer de sua infalível certeza. E, como resultado, tornamo-nos consumidores de falsas necessidades, as quais nos levam à ilusão de acumularmos riquezas em paraísos virtuais. Enfim, somos consumidos pela ideia de um espaço virtual utópico.

Assim, vivendo das migalhas de uma realidade paralela, esquecemo-nos dos bolsões de miséria, do lixo neoliberal, da realidade que está bem ali ao lado da realidade virtual utópica, como se vivêssemos em um mundo a parte, onde as relações e os valores humanos se esfacelaram.

Mas, felizmente, a arte se impõe, por ser livre de amarras e ser espaço aberto a contradições. A ficção, muitas vezes, provoca os sentidos ao apresentar uma supra realidade que se parece com o mundo real e suas mazelas. Assim, vemos nas telas de cinema filmes como Matrix, Crash, O Cubo entre outros e na arte escrita, autores literários como Saramago, que desmascara o simulacro do mundo virtual, na fotografia, temos Sebastião Salgado que traz a tona as miséria, provocando um choque.

O problema é que, no mundo pós-moderno, a ficção assumiu um papel tão grande em nossas vidas que não podemos mais saber ao certo o que é real ou não, se não vejamos: há lendas urbanas que nos atormentam como realidades plangentes que vão nos engolir, mas ao mesmo tempo a violência é uma realidade com a qual devemos lidar. Acreditamos no homem e na ciência, mas nunca sabemos se a mais nova descoberta é de fato uma verdade. Acreditamos em Deus, mas não sabemos em qual Deus, pois há uma religião nova em cada esquina, e o mais incrível é que cada uma descreve seu deus de uma forma diversa. Acreditamos na família e no casamento, mas as estatísticas mostram que há quase o mesmo número de separações quanto o de uniões, além do mais as pessoas vivem escravas de uma vida infeliz.

Se levantarmos todas as possibilidades de incoerências e incongruências que vemos no mundo, não vamos nos sustentar, pois é mais fácil "viver feliz" em uma "realidade" simulada, a estar o tempo todo se chocando com a realidade. Mas... o que é a realidade? Num mundo onde a ficção tomou conta de todos os espaços, a realidade está com quem? Com o teórico? Com o político? Com o crítico? com o consumidor? com o artista gráfico? ...

A única realidade possível de se ver diz respeito aos índices de violência, descaso com a saúde pública, com os desvios de verbas que deveriam servir aos mais necessitados e promover uma sociedade um pouco mais equilibrada. Mas, será que os índices não são também uma ficção? Até que ponto essas informações não são também fruto de manipulações?

Até a arte chegou a um beco que parecia não ter saída. Pois, com tanta ficção por todos os lados, como fazer o diferencial? Afinal, a ficção é própria da arte e não da realidade.

A arte passa por um processo de derreferencialização, pois, para subsistir, necessita se mostrar real. Ela mesma se questiona: se a natureza própria de seu fazer fundamenta-se na construção de espaços ficcionais, deverá fazer o papel inverso - precisa estar mais perto da realidade para conseguir chamar atenção.

Ainda bem que a arte não cai nessa armadilha de construções de aparência no lugar da essência e continua buscando ser um elemento de representação e não de descrição de uma realidade. O espaço de questionamento permanece aberto, apesar de tudo.

Assim, a literatura, por exemplo, apresenta uma desrefencialização quando desfigura o personagem, quando usa de múltiplos referenciais e cortes temporais. No cinema, as histórias perdem a linearidade tanto temporal, quando de núcleo narrativo. A escultura passa a exacerbar as dimensões das formas humanas e a expor retratos cada vez mais fieis de momentos fracionados do mundo real, e o que dizer da fotografia, que capta instantes dessa realidade fragmentária e global.

Enfim, a criatividade não conseguiu ser suplantada pela criação de universos paralelos, e isso dá uma nova visão à leitura que a arte faz do mundo e de si.

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